Tiroteios,<br> loucura e privilégio

António Santos
Foto LUSA

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Desde o começo de 2014 os EUA já registaram 120 tiroteios em massa (com quatro ou mais alvejados), um número que segundo o New York Times triplicou em duas décadas. Se em Portugal a pergunta que cada nova tragédia inspira é «Como é possível isto acontecer?», já a maioria dos estado-unidenses formulam uma interrogação diferente: «como é possível isto não ser pior?».
A explicação costumeira, a banalização e proliferação de todos os tipos de armas, é conveniente e indispensável, mas não se basta a si própria. Embora os EUA sejam o país do mundo com mais armas por habitante, essa cultura explica por que é tão fácil, mas não explica porquê. Se quisermos compreender por que é que os massacres mortificam semanalmente as escolas, os centros comerciais e os restaurantes daquele país norte-americano, devemos debruçar-nos sobre a semântica de que se revestem estes crimes.
Ao contrário de Portugal, nos EUA a «raça» é um instrumento adoptado pelo governo na classificação de toda a população. Conquanto sem qualquer fundamento científico, a terminologia «branco», «negro», «hispânico», «asiático», etc. tem efeitos práticos na vida das pessoas: para além de gerar estatísticas detalhadas sobre a taxa de criminalidade, obesidade ou natalidade de cada «raça», descobre aplicações médicas, educativas, eleitorais e jurídicas.

Privilégio

Num país em que o eco da escravatura ainda ressoa na segregação social dos afro-americanos ou na discriminação política imigrantes, os problemas dos indivíduos são interpretados como o reflexo dos problemas inerentes à sua «raça», ao seu sexo, à sua religião ou à sua nacionalidade. Na terra da «liberdade individual», o falhanço pessoal é sempre julgado à luz do falhanço colectivo. À excepção do único grupo demográfico considerado titular de livre arbítrio: o «homem branco» (com agá pequeno).
Esta forma de pensar, que se projecta com formidável eficácia em toda a sociedade estado-unidense, levantou uma muralha de estigmas em volta de negros, nativos, imigrantes, muçulmanos, comunistas e mulheres. Assim, quando no ano passado dois imigrantes fizeram explodir uma bomba artesanal em Boston, chamaram-lhes terroristas. Eram muçulmanos. Quando, no ano anterior, um neonazi matou seis pessoas num templo sikh ninguém falou de terrorismo. Ou seja, o terrorismo está reservado para imigrantes e negros e a loucura para o «homem branco». Porque este é por natureza «normal» e o outro «estranho» à partida.
Mas malgrado a criminalização mediática e institucional de negros e imigrantes, a verdade é que quase todos os massacres são cometidos por homens brancos, jovens, cristãos e endinheirados. A cultura das classes dominantes tinha-lhes prometido ascensões meteóricas aos últimos andares dos arranha-céus; tinha-lhes garantido salários de seis dígitos, bons carros, mulheres bonitas e criados; tinha-lhes afiançado que «poderiam ser tudo o que quisessem ser»

Loucura

A crise do capitalismo tratou de esfumar as pretensões dessa pequena e média burguesia, concentrando em cada vez menos jovens afortunados essa liberdade de «poder ser qualquer coisa». E os outros jovens brancos, cristãos e de boas famílias, sentiram-se subitamente deserdados, impotentes, traídos e, sobretudo, assustadoramente alienados da sociedade e de si mesmos. Era assim Elliot Rodger, o filho de um importante realizador de Hollywood que no passado 23 de Maio matou seis pessoas para se vingar das rejeições do sexo feminino; era assim Adam Lanza, que em 2012 matou vinte crianças e seis adultos numa escola; era também assim James Holmes, um brilhante investigador científico que em 2012 matou 12 pessoas numa sala de cinema. Eram assim Jerad Miller e Amanda Miller, um casal de extrema-direita que na semana passada matou dois polícias e um civil.
Nenhum destes casos foi considerado um atentado terrorista, mas apenas casos de loucura. Sem escamotear os gravíssimos problemas de que a saúde mental padece nos EUA, a loucura maior é aquela que aliena estes seres humanos da sua própria humanidade, empossando privilégios espúrios e traficando com medos e ódios estultos. Essa loucura chama-se capitalismo, uma doença degenerativa em que o paciente se torna mais violento e desumano à medida que adoece.
Os EUA são especialmente atreitos a tiroteios e massacres porque o capitalismo está tão excepcionalmente desenvolvido que a violência, a loucura, o privilégio e a desumanidade se edificaram como uso e regra. Mas se o capitalismo é a doença, o socialismo é a cura.




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